sexta-feira, 23 de novembro de 2007

A ESTÉTICA LITERÁRIA E O PICARESCO EM "MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS"


O século XIX, o Brasil foi marcado por transformações sociais, econômicas e culturais. Nesta última, assistiu-se a uma espécie de depuramento do estilo, quando se buscou substituir a estética arcádica pela concepção romântica. O advento do Romantismo fez surgir a cultura do folhetim, com narrativas que iam do dramático ao patético, as quais traziam, às famílias burguesas, cenas trespassadas por aventuras e tramas amorosas. Semelhantes às novelas televisivas da atualidade, os folhetins eram distribuídos esparsamente e a apreciação popular servia como termômetro para a direção dos capítulos subseqüentes. Quanto às personagens se destacavam, eram retrabalhadas; ao contrário, simplesmente desapareciam ou ficavam reduzidas. Além do mais, na narrativa havia um “fio condutor” e várias historietas ligadas a ele através de pequenos laços com a personagem principal ou com a trama básica. Para o leitor, a narrativa tornava-se tão mais interessante quanto maior fosse o dinamismo do enredo, a rapidez e a espontaneidade da cena, a movimentação das personagens. Em meio a esse modo de divulgação literária, alguns escritores arriscavam-se a veicular histórias que continham uma temática desinteressante sob a perspectiva do leitor. Este é o caso de “Memórias de um Sargento de Milícias”, escrita por Manuel Antônio de Almeida, no suplemento “A Pacotilha” do “Diário Mercantil”, nos anos de 1852 e 1853. Por distanciar-se da temática literária vigente a obra só foi reconhecida posteriormente, sobretudo pelos realistas, que perceberam no romance o primeiro indício concreto do seu estilo, sendo vista como uma obra precursora da estética realista. O primeiro texto crítico sobre a obra foi escrito por José Veríssimo (1894), o qual apontava para certas características estruturais, inaugurando uma espécie de escola interpretativa que veria nesse romance um dos mais ilustres representantes da expressão realista. Com efeito, desde o começo da narrativa, segundo Veríssimo, percebe-se uma deliberada preocupação por parte de Almeida em suprimir toda manifestação de idealismo romântico, caminhando em direção à realidade material que compunha às cenas, por meio do detalhamento do cotidiano e da verossimilhança. Outra manifestação, viria com Mário de Andrade (1940) que revelou a natureza picaresca da obra. Por fim, a interpretação dialogante, de Antonio Candido (1956), opta pela idéia do romance ser excêntrico, devido ao distanciamento de sensibilidade dos leitores da época. Também considera o romance pautado pela malandragem e não exatamente pelo picaresco. A obra teria um “realismo ponderado”, porque se for classificar outros elementos organizacionais do texto, estes são de inegável extração romântica, ressaltando, ainda mais essa ambigüidade genérica. Assim, torna-se necessário destacarmos o “costumbrismo” na obra, o qual aparece em inúmeras cenas: a cerimônia religiosa, as Folias do Espírito Santo, a dança do fado, entre outras, todas elas realizadas de uma maneira quase didática, sem nenhum vestígio de idealismo romântico. Dessa forma, estabeleceu-se a interpretação crítica sob uma dupla perspectiva: de um lado, a que parte de uma discussão baseada na dicotomia realista/ não realista e, de outro, a que segue o caminho da controvérsia dicotômica picaresca/não picaresca. No primeiro caso, trata-se de um documento social com um realismo, porque se volta para o mundo real, procurando mostrá-lo com veracidade. O idealismo dos namorados para se chegar ao casamento contrapõe a naturalidade do sensualismo. As personagens de “Memórias” são fêmeas e machos atraídos pelo sexo, prenunciando o Naturalismo. Assim, surge Vidinha, mulata fogosa que antecipa o comportamento das personagens femininas naturalistas e pode ser considerada a precursora de Rita Baiana, d’O Cortiço e da Gabriela, de Jorge Amado. O tom de crônica de costumes somente alcançou o reconhecimento da crítica e dos leitores depois do Modernismo. Já, no segundo caso, o protagonista tornou-se o primeiro malandro da novelística brasileira. Ele vive de expedientes por desamor ao trabalho, não passa fome e não sofre preconceitos sociais. Há um contraste entre o herói picaresco, personagem nas novelas espanholas do século XVI, cujas qualidades não se encaixam em Leonardo-filho. Este é um rapaz esperto, malandro, traquinas, sendo capaz de armar as maiores confusões, transformando-se num anti-herói. É de origem humilde e irregular, “largado, mas não abandonado”, ficando longe da condição servil. Seu padrinho quer vê-lo padre ou advogado e ele nunca se preocupa com a necessidade de ganhar a vida. Vive dos “acasos”, nada aprendendo com a experiência. Nasce já malandro feito, como se tratasse de uma qualidade essencial e não atributo adquirido por força das circunstâncias. Tem sentimentos sinceros, é leal e não bajulador. Casa-se com seu amor da infância e acumula cinco heranças. Contrariamente a essas características, o herói pícaro espanhol é moço ingênuo de baixa extração social, que cai na vadiagem e luta inescrupulosamente para matar a fome, além de não desejar trocar sua liberdade pela sedentariedade dos demais. Trabalha como servo, porque vai mudando de ambiente, mudando de patrões, variando a experiência e vendo na sociedade um conjunto. Essa experiência resulta na aprendizagem que amadurece e o faz recapitular a vida sob a luz de uma filosofia desencantada. O contato áspero com a realidade, o torna mentiroso, dissimulado e ladrão, sendo a maior desculpa das “picardias”. Terminam sempre desiludidos e miseráveis: traem os amigos, enganam os patrões, não amam e casam por interesse. Em relação às mulheres, demonstram certa misoginia (horror ao casamento). Com isso, pode-se dizer que a obra possui um picaresco mitigado. Mais uma vez, como no caso de sua filiação ao realismo, a obra apresenta-se como sendo de transição da estética romântica para a realista.

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