Quando Manuel Antonio de Almeida escreveu sua única obra, “Memórias de um Sargento de Milícias” (1854), voltou-se para a confecção de personagens-tipo, isentando-as de constituição psicológica aprofundada. A construção de figuras planas é justificada pela preocupação com o coletivo. A obra não reforça a imagem “cor-de-rosa” dos leitores de seu tempo, mas mostra aquilo que eles não queriam ser, pois os anti-heróis não ocultam as mazelas do caráter, antes as mostram claramente. Em outras palavras, o objetivo maior da narrativa não é a análise profunda dos caracteres, mas descrever os tipos sociais que viviam na sociedade carioca do século XIX. Não é de interesse do autor revolver a individualidade de cada um dos personagens, particularizá-los ou desvendar-lhes a personalidade, pois desde o inicio, está mais propenso a fazer uma crônica de costumes, muitas vezes amarrada ao aspecto histórico, mas não necessariamente documental. Sua linguagem fácil, com vocábulos corriqueiros, visa a uma espécie de documentação da fala em camadas mais populares, de certa forma, adaptada a maneira de ser das personagens. Freqüentes também são as interferências do autor, dialogando com o leitor para meditem sobre o desenvolvimento da obra, em atitude claramente metalingüística. Para Mário de Andrade (1940), o romance possui características picarescas, já que o protagonista é um rapaz esperto, malandro, traquinas, sendo capaz de armar as maiores confusões. É de origem humilde e irregular, “largado, mas não abandonado”, ficando longe da condição servil. Nasce já malandro feito, como se tratasse de uma qualidade essencial. Com isso, pode-se dizer que Leonardinho possui traços picarescos, sendo considerado um anti-herói. Seu nascimento escapa do estilo romântico que envolve o casamento e a sacrossanta prole nascida do amor. Seus pais, Leonardo Pataca e Maria da Hortaliça vivem maritalmente, em relação “quase” normal. Abandonado pelos pais, acaba por ser criado pelo padrinho. Acrescenta-se ao quadro da formação de Leonardo os tipos com quem ele convive, marginalia de um ambiente que contribui para fazer dele um vadio-tipo da Literatura Brasileira, que desembocará no anti-herói moderno com tendências a malandragens, como Macunaíma. Ao novo tipo de herói corresponde uma nova concepção de heroína: Luisinha, moça roceira e tímida, sem graças de mulher, excessivamente magra e desarranjada, embora contasse com uma boa herança. Por ela Leonardo se enamora. Ela também é escolhida pelo vilão, mau-caráter, traiçoeiro e interesseiro José Manuel, que se utiliza do comportamento vadio do herói para separar o casal. O enlace de Luisinha com José Manuel propicia ao autor uma análise ferina dos casamentos da época. Entre o protagonista e sua pretendente está Vidinha, tipo bem elaborado de mulher brasileira que traz, aliadas à beleza, à sensualidade e ao espírito folgazão, à relação sem compromissos, porque a ela é possível amar sem casamento. Seus principais pares amorosos – Luisinha e Vidinha – constituem um par simétrico. A primeira da ordem, a mocinha burguesa com quem não há relação viável fora do casamento. Já, a segunda, no plano da desordem, é a mulher que se pode apenas amar, sem casamento, nem deveres. Quando Leonardo se reaproxima de Luisinha e o relacionamento culmina no casamento, a tonalidade do relato perde a essência das seqüências da mulata. Mario de Andrade assinala que o livro termina quando não há mais fôlego para travessuras, quando o “inútil da felicidade começa”, pois não são mais possíveis as peripécias do anti-herói É como se o narrador, como Leonardo, encarasse o casamento com seriedade, mas sem muito entusiasmo, demonstrando a concessão à moral burguesa. Sempre encobrindo as peripécias de Leonardinho, temos o padrinho, solteiro e solitário, que se afeiçoa ao afilhado que ficara sob sua guarda, chegando a contemplar com benevolência as não poucas travessuras do moleque. Como o padrinho ou barbeiro, outras personagens não tem individualidade, são identificados por suas profissões, todas bastante populares: a comadre é parteira, há o toma-largura, a moça do caldo, o mestre de cerimônias, o mestre de reza entre outros. Assim, podemos constatar que “Memórias de um Sargento de Milícias” foi o primeiro romance na Literatura brasileira a focalizar as camadas populares com cenas reais. As personagens são autenticas, não idealizadas, divididas entre o bem e o mal. Para isso, o autor abandonou a sofisticação das construções lingüísticas, aproximando sua obra de um linguajar oral, descontraído, em “estilo de conversa com o leitor” e arquitetou o estilo “malandro” de viver, característica de certos tipos brasileiros, que, dialeticamente, oscilam entre dois universos antagônicos, a ordem versus desordem.
sexta-feira, 23 de novembro de 2007
OS TIPOS SOCIAIS EM “MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS”
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