sábado, 10 de novembro de 2007

A semântica na estruturação do fantástico no conto "O Gato Preto", de Edgar Allan Poe

Ao lermos “O Gato Preto”, percebemos a hesitação e a dúvida da personagem diante de acontecimentos tão extraordinários. Essa ambigüidade, “real versus ilusório”, é acentuada pelo fato da história ser relatada por um narrador autodiegético. Este conta suas experiências e possibilita vê-los através da sua interioridade. Daí, a dúvida se instala no receptor e se estrutura, principalmente, no “índice semântico”, cuja linguagem figurada anuncia o sobrenatural. Assim, Poe utiliza metáforas e comparações que antropomorfizam o animal. Emprega também símbolos, os quais nos remetem a literatura fantástica. As cores predominantes – o branco, preto e o vermelho – unidas à significação dos outros símbolos, adquirem um valor relevante. No título temos o "preto", cor que remete ao mundo das trevas. O branco simboliza a pureza e o mundo celestial. Já, o vermelho “cor de fogo” e de “sangue”, quando espalhado significa morte. No mundo animal, a escolha do “gato preto” e com nome de Pluto, deus do inferno, denota a anormalidade do narrador e a presença do gótico. Em muitas tradições, o animal é tido como servidor do inferno, simbolizando a fatalidade, e possui qualidades mágicas, pois vê espíritos e tem sete vidas. Poe pode ter dado esse nome à narrativa, devido às superstições existentes durante a Idade Média, pois mulheres que tinham íntimas relações com gatos, eram bruxas e associavam-se a demônios. Na narrativa, percebe-se aversão do protagonista ao animal, que após assassiná-lo, é surpreendido por um incêndio e seu pensamento se direciona ao gato que havia enforcado. Nesse trecho, o simbolismo do fogo aponta para o “mito da Fênix”, ave mitológica, quando queimada, renascia das próprias cinzas. O título já prenuncia o retorno, determinado pela figura que possui sete vidas. Além das cores associadas a símbolos, à evocação dos elementos divinos são importantes. “Deus” seria uma manifestação da transcendência, relacionando-se às premonições do narrador. Dessa forma, nota-se que a semântica intui-nos a perceber os acontecimentos fantásticos e fornece diversas contribuições, produzindo medo, espanto, terror e o suspense, criando um universo particular. O “excesso” funciona igualmente como “índice semântico”. No início temos um “animal excepcionalmente grande e bonito". Também, a utilização dos intensificadores - tão, tanto e muito - proporcionam esse efeito:“Era um gato negro – muito grande – tão grande quanto Plutão”. Esse excesso será o ponto comum dos temas que se relacionam com o olhar, cuja revelação do limite entre a matéria e o espírito fornece o pretexto às transgressões, como a metamorfose e o pandeterminismo. Este, no conto, refere-se ao processo causa-circunstância-pânico da revelação do mistério. Já, aquele, traduz-se pela multiplicação do gato. Seu aparecimento causa no início surpresa; depois, pânico e desespero. Outra condição do fantástico é o elemento baseado no folclore e na superstição popular. Por ser algo cultural, cada leitor o traduz conforme seu contexto histórico-cultural. Na narrativa, a experiência de um homem envolvido com um gato preto dá origem a dois temas essenciais: o “duplo”, visto como ligação com o mundo transcedental, onde o espírito livra-se das banalidades terrestres, ultrapassando os limites do comum; e, a “morte” que liberta a personagem do duplo, já que a convivência entre ambos se revela impossível. No conto, esses temas são determinados pela aparição e pelo olhar do felino, funcionando como mecanismo que provoca o desdobramento. Em relação aos elementos estruturadores do conto, temos um narrador autodiegético coexistindo em dois espaços: o objetivo e o subjetivo. O primeiro é rapidamente descrito, pois o protagonista penetrará, em seguida no segundo, que organizará seu interior e cujos limites são absolutos. Na história, a casa e o quintal são os lugares das experiências sobrenaturais, do perigo e da perda. Quando consegue transpor os limites do mundo exterior, o narrador entra em outro, formado por sua memória, retrospectiva, recuperando várias cenas em "flashback”. Os fatos relatados, segundo sua percepção, interferirão nas descrições do ambiente, mudando a sua natureza, visto que o mundo exterior cessa de ter uma realidade plena. No porão, o protagonista enfrenta seu próprio terror, sentimento desenvolvido por sua loucura. Nesse lugar, o macabro mistura-se ao real, e evidencia ainda mais, a ambigüidade. Essa indecisão, objetivo versus subjetivo, intensifica, ainda mais, a angústia da personagem que prevê os futuros acontecimentos. No espaço fantástico todo esforço é inútil, pois nesse lugar a vítima é encurralada pela fatalidade a qual está destinada. Logo, o narrador vivencia fatos particulares, que possuem espaço e tempo próprios, os quais se interligam, porque uma mesma experiência contribui para a progressão da personagem tanto espacial como temporalmente. Assim, o fantástico surge, amadurecendo de acordo com as exigências de uma ação lenta e dissipando-se conforme as de um desfecho rápido. Na narrativa, essa evolução temporal se acelera no momento da descoberta do segundo gato. A estrutura binária espacial é responsável pela ruptura do tempo cronológico. O monólogo da personagem contribui para romper a linearidade do tempo, pois é ele quem manipula os lapsos temporais, conforme as necessidades da evolução da história: inicia-se pelo final para, só depois, realizar uma volta ao passado. Esse “flashback” faz-se de uma maneira contínua, conforme sua memória. Mescla o passado remoto, empregando o pretérito perfeito, com o presente da narrativa, ajudado pela surpresa do narrador ao adentrar no universo fantástico. Esse resgate memorial permite ao protagonista vivenciar novamente os fatos que levaram a sua metamorfose, ao mesmo tempo que defronta-se com sua insanidade. Enfim, Poe se apoderou de uma série de recursos lingüísticos e culturais para suscitar terror e causar suspense neste enredo.

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