“Memórias de um Sargento de Milícias” consagrou-se com um único livro de Manuel Antonio de Almeida. Foi publicado, inicialmente, no suplemento “ A Pacotilha” do jornal Correio Mercantil, no Rio de Janeiro, em 1852 e 1853, para depois, aparecer publicado novamente em dois volumes em 1854, assinados por “um brasileiro”. Para escrever esta obra, Almeida baseou-se nas lembranças de um colega de redação, também jornalista, um português, que anteriormente havia sido um sargento de milícias, chamado Antonio César Ramos. Este era bom de prosa, exímio contador de “causos”. O autor pretendia narrar a acidentada vida de uma criança nascida no inicio do século XIX, mas acabou fazendo uma esplendida reconstituição do período nas camadas suburbanas. Em outras palavras, não é uma novela “picaresca”, mas uma “novela de costumes”, que retrata os hábitos dos habitantes do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX, da época de D. João VI. Foram catalogados os costumes, os modismos, as conversas de esquina, as superstições, as festas de rua e as de família, a forma de vida e a linguagem, ou seja, toda uma gama de valores que determinaram as reações peculiares aos meios retratados. Escrito em pleno desenvolvimento do Romantismo, não se enquadra em nenhuma das racionalizações ideológicas reinantes, devido a maneira direta de focalizar os acontecimentos tanto temporal, “Era no tempo do Rei”, quanto espacialmente e por trazer o enredo muito diferente dos romances da época, sendo, talvez, a única obra do século XIX que não exprime uma visão de classe dominante. O autor se afasta da linguagem romântica e opta por uma coloquial e pelo ritmo popular. Considerada também novela, seus capítulos são unitários, quase todos contendo um episódio completo, os quais se dividem em duas partes. A primeira contém 23 capítulos, que abordam as diabruras do herói-criança em caráter de crônica com uma serie de quadros de costumes da época. Nesta parte, Leonardo-filho divide com o pai, Leonardo Pataca, o status de personagem principal. Já, na segunda, com 25 capítulos, são descritas as façanhas do jovem.A inclusão de costumes diminui, cedendo lugar para o desenrolar das paixões, cujo principal personagem é Leonardinho. A mola mestra da narrativa é o movimento, e não a análise de indivíduos. A rapidez com que transcorrem as cenas é tamanha que faz o crítico Antonio Candido classificar a obra como romance em moto-contínuo, isto é, um fato puxa o outro e assim por diante. Mario de Andrade assinala que o livro termina quando não há mais fôlego para travessuras, quando o “inútil da felicidade começa”, pois não são mais possíveis as peripécias do anti-herói. A ação do romance ocorre no Rio de Janeiro, sobretudo nas áreas que naquele tempo constituíam o grosso da cidade com pessoas livres e modestas. Por isso, a obra é um “documentário restrito que ignora as camadas dirigentes e camadas básicas”, já que eliminando o escravo e as classes dirigentes, suprimiu dominado e os dominadores, restando apenas a convivência das personagens entre licito e ilícito, que se ascendem socialmente ou não. Na sociedade descrita, a ordem comunica-se com a desordem constantemente. As personagens dividem-se entre as que vivem segundo normas estabelecidas socialmente, tendo no ápice o grande representante delas, Major Vidigal e aquelas que se opõem a elas. Logo, há um pólo positivo da ordem e um negativo da desordem, funcionando como dois imãs que atraem Leonardo. A dinâmica do livro pressupõe uma gangorra entre ambos pólos, como por exemplo, o caso de Leonardo-Pai que, inicialmente, faz parte da ordem, como oficial de justiça e, apesar de ilegítima, sua relação com Maria da Hortaliça é normal segundo os costumes do tempo e da classe social. Mas depois de abandonado por ela, entra num mundo suspeito por causa do amor pela cigana, que o leva às feitiçarias proibidas.Mais tarde, a cigana passa a viver com ele, até que, finalmente, já maduro, ele se “junte” com Chiquinha, a filha da Comadre, num relacionamento estável, embora sem a benção religiosa. Assim, representante da ordem, desce a sucessivos círculos da desordem e volta em seguida a uma posição relativamente sancionada. Segundo Antonio Candido, “o cunho especial do livro consiste em certa ausência de juízo moral e na aceitação risonha do ‘homem como ele é’, mistura de cinismo e bonomia que mostra ao leitor uma relativa equivalência entre o universo da ordem e o da desordem; entre o que poderia chamar convencionalmente o bem e o mal”, rompendo com o maniqueísmo romântico. Numa obra onde não há remorso e a avaliação dos atos é feita segundo sua eficácia, a repressão moral só pode existir nas leis que regem a sociedade. “É uma ‘questão de polícia’ e se concentra inteiramente no Major Vidigal, cujos deslizamento cômico para as esferas da transgressão acaba, no fim do romance, por baralhar definitivamente a relação dos planos.” A obra cria um universo que parece liberto do peso do erro e do pecado. Um universo sem culpabilidade e mesmo sem repressão, a não ser a repressão exterior que pesa o tempo todo por meio do Vidigal. (...) as pessoas fazem coisas que poderiam ser qualificadas como reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam. E como todos têm defeitos, ninguém merece censura”. No caso do padrinho, este enriquece por meio da traição e do roubo, mas “o narrador só conta isto depois que a nossa simpatia já lhe está assegurada pela dedicação que dispensou ao afilhado”.
sexta-feira, 23 de novembro de 2007
A ORGANIZAÇÃO TEXTUAL EM “MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS”
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